A descoberta do bilhete de identidade de um prisioneiro chinês no forro de um casaco vendido no estrangeiro levanta questões sobre a extensão do trabalho forçado no país.
O que há para saber
Uma mulher britânica descobriu a carteira de identidade de um prisioneiro chinês na manga de um casaco encomendado online.
No passado, os detidos chineses inseriam mensagens nos produtos que fabricavam para alertar sobre a sua situação.
Nos últimos anos, a questão do trabalho forçado na China tem sido levantada principalmente em relação ao tratamento dispensado aos uigures, uma minoria muçulmana perseguida pelo regime comunista.
Uma mulher britânica disse ao jornal Vigia Ela fez essa descoberta surpreendente ao perceber a presença de um objeto sólido nas mangas das roupas Regatta compradas online que restringia seus movimentos.
O bilhete de identidade em questão incluía a fotografia de um homem vestindo uniforme de prisão, o nome do seu centro de detenção e uma referência ao Ministério da Justiça chinês.
“Esta situação incomoda-me… Sei que é legal na China e que temos padrões diferentes na Grã-Bretanha, mas não esperamos que os prisioneiros façam roupas”, observou a mulher que encomendou o casaco.
A Regatta indicou inicialmente que o cartão em questão identificava um trabalhador de uma fábrica chinesa que garantia uma parte da sua produção antes de mudar de ideias e prosseguir com a investigação.
Num comunicado divulgado na sexta-feira, a empresa de roupa desportiva afirmou que os seus exames adicionais concluíram que o casaco veio de uma instalação que adere a uma “abordagem de tolerância zero ao trabalho forçado e prisional”.
A empresa disse que o cartão veio, na verdade, de um ex-presidiário que foi contratado e pago pela instituição de março a junho de 2023 antes de deixar seu cargo pouco antes do envio do casaco.
“Continuamos a investigação para determinar como a peça foi costurada na peça de roupa”, acrescentou a Regatta, que afirma dar grande importância à natureza ética das suas práticas comerciais.
Não é o primeiro
Esta não é a primeira vez que um evento deste tipo é noticiado na mídia.
Em 2019, uma jovem que vivia em Londres encontrou uma carta de prisioneiros pedindo ajuda com um cartão de felicitações fabricado na China.
“Somos prisioneiros estrangeiros na prisão de Qingpu, em Xangai, China. Somos forçados a trabalhar contra a nossa vontade. Por favor, ajude-nos notificando as organizações de direitos humanos.”
Num relato publicado no ano passado, um antigo recluso, Peter Humphrey, disse que os funcionários da instalação orquestraram um esquema com prisioneiros cooperativos para negar a história e salientar que ali não era praticado trabalho forçado.
Humphrey observou no mesmo relatório que este tipo de “mensagem para o mar” é por vezes utilizado para solicitar ajuda do estrangeiro e envolve um grande risco porque as autoridades chinesas punem severamente qualquer iniciativa deste tipo.
O trabalho forçado está presente em todo o sistema prisional da China e afecta todos os centros de detenção, onde milhões de pessoas estão detidas.
O ex-prisioneiro da prisão de Qingpu, Peter Humphrey, em um relato publicado no ano passado
Perseguição uigure
A questão do trabalho forçado na China tem sido amplamente discutida nos últimos anos em relação à perseguição dos uigures pelas autoridades chinesas.
Segundo muitas organizações de direitos humanos, centenas de milhares de membros desta minoria muçulmana em Xinjiang foram colocados em campos de detenção sob o pretexto de serem suspeitos de terrorismo. Muitos deles foram forçados a trabalhar em fábricas que por vezes eram integradas em prisões.
Segundo o Departamento de Estado norte-americano, o governo chinês também transferiu de Xinjiang, sob o pretexto de combater a pobreza, milhares de detidos que foram forçados a trabalhar no setor industrial noutros pontos do país.
Muitos países ocidentais tomaram medidas destinadas a impedir a importação de quaisquer produtos resultantes do trabalho forçado dos uigures.
Os Estados Unidos, em particular, decidiram utilizar uma abordagem particularmente vigorosa, permitindo que os funcionários aduaneiros obrigassem as empresas suspeitas a provar que os seus produtos não estão “contaminados”.
Abordagem do Canadá
Arie van Assche, especialista em economia chinesa da HEC Montreal, observa que o Canadá, especialmente por medo de provocar retaliações por parte de Pequim, escolheu uma abordagem menos aberta que se revelou mais complicada de implementar.
É difícil para as autoridades governamentais provar que os produtos foram realmente fabricados com recurso a trabalho forçado em Xinjiang.
Ari van Assche, especialista em economia chinesa da HEC Montreal
Ottawa adotou recentemente uma lei que obriga os ministérios e as principais empresas importadoras a explicar as medidas tomadas a partir de 2024 para evitar que tal cenário ocorra.
O Gabinete do Provedor de Justiça para a Responsabilidade Corporativa do Canadá também está a investigar o caso e anunciou a abertura de investigações visando seis empresas.
A Lei de Implementação do Acordo de Comércio Livre com os Estados Unidos e o México inclui disposições que proíbem a importação de bens fabricados por prisioneiros ou de trabalho forçado, que também se destinam a reduzir abusos.
Gohar Elham, do Sindicato dos Direitos dos Trabalhadores, destaca que a lei que proíbe a importação de produtos derivados do trabalho de prisioneiros existe há muito tempo na Grã-Bretanha, mas tem pouco efeito.
“As autoridades aduaneiras nunca aplicaram isso em 100 anos e, que eu saiba, nenhuma remessa foi confiscada”, disse ela na sexta-feira.